NOITES BRASILIANAS
por Severino Francisco
(publicado na Crônica da Cidade 6/12/2010 no Correio
Brasiliense)
Certa vez, ao
me ouvir falar que considerava os desenhos que w. Hermusche realizou sobre as
noites de Brasília, na década de 1980, um dos melhores registros visuais sobre
a cidade, uma amiga elegante e generosa me ofereceu uma obra do artista.?Mas,
você não gosta do desenho do artista?? perguntei. E ela respondeu: ?Adoro, mas
acho que você ainda gosta mais?. Declinei da gentileza, pois, na verdade, o que
me preocupava era o fato daquele belo trabalho sair de circulação e ser
destituído da história da cidade.
Por isso, com prazer recebi a
notícia que Hermusche montaria uma nova exposição e lançaria um álbum com
reproduções de sete desenhos da série. Hermusche integra uma geração que se
empenhou em empreender pesquisas no sentido de criar uma identidade musical,
poética, cinematográfica e visual para Brasília, uma cidade artificial e que
teve sua história atropelada por um regime militar. Uma cidade que se
apresentava como um território livre ou um papel em branco a ser ocupado,
demarcado e sinalizado.
O espaço em que Hermusche se
move é o das noites brasilianas e o seu posto de observação é a janela do
apartamento, do ônibus ou do seu carro em movimento. Se a gente comparar a
noite de Brasília com a de outras capitais vai constatar muitas diferenças. A
de São Paulo, por exemplo é o caos de maquinas, ruídos, sirenes e luzes. Na
?Prece do mineiro do Rio?, Carlos Drummond de Andrade escreveu que era uma cidade
onde ?voz e buzina se misturam?.
A noite de Brasília é silenciosa e espacial.
Por isso, mesmo no horário de rush, o
barulho dos carros soa como algo espectral. É essa atmosfera que Hermusche
capta em seus desenhos. Ele se deixou marcar e deixa também a asua marca na
cidade. A Brasília concisa e derramada, concreta e sideral, concebida por Lucio
Costa e Oscar Niemayer, é refratada sob as luzes dos carros, dos postes e dos
letreiros luminosos dos shopping centers. É uma estética neon-concreta.
Esta mirada sobre Brasília
poderia resvalar perigosamente para o território da arte pop ou da assepsia
publicitária. Mas Hermusche dribla a armadilha com muita habilidade. Ele
redesenha Brasília com algo do gesto visceral do grafite, das granulações de
vídeo, das rasuras do traço e da inconclusão de um esboço. Há algo de erro
nesses desenhos que humaniza Brasília. O que reponta nas noites brasilianas de
Hermusche é uma outra Brasilia refundada em cima da Brasilia criada por Lucio
Costa e Oscar Niemayer: cinética, eletromagnética, lisérgica impressionista e
expressionista. É uma Brasília espectral sob o bombardeio das luzes da cidade.
Hermusche injeta uma alma elétrica na paisagem silenciosa e
noturna de Brasília.
PELA JANELA DO CARRO, QUEM É ELE?
por
Angélica Madeira
Os desenhos de Hermusche guardam
uma grande unidade, apesar das três décadas que separam os primeiros dos
últimos. São paisagens urbanas, noturnos.
As escolhas estéticas do artista sintetizam uma longa convivência com
outras matérias de expressão, a fotografia, o video, a ilustração, o graffite
que imprimem ao desenho características próprias como a preferência por um tipo de lente, a grande angular, e o
interesse pela iluminação e pelo movimento. São recursos mobilizados para
encenar a gênese de um mundo autônomo e trazer à tona as fantasmagorias
poéticas da cidade.
Onde está a estranheza? Quem é o
espectro que dirige o automóvel? Certamente um espectro que vê demais, que quer
deixar um registro da emoção, do impulso ao
gesto que se resolve em manchas, linhas e ícones - carros, postes, túneis - sempre
dentro de um quadro bem demarcado: parabrisa e moldura. O desenho, mesmo em
grande formato, não perde sua tensão, a densidade intimista do grafismo, uma
espécie de escrita da subjetividade. Cria-se assim um personagem, um cronista
das noites brasilianas que vê a cidade a partir da janela de seu carro em
movimento, ora mais lento, ora acelerado.
Cria-se ao mesmo tempo um
universo único, feito de riscos e
rabiscos, linhas sinuosas, enérgicas, verdes, cinzas, vermelhas, amarelas,
tirando partido da fatura do pastel que, por não empastar completamente o suporte, mantém uma textura porosa e permite
a exploração das possibilidades poéticas da luz. O desenho intitulado Eu,
espectro é uma figuração alegórica do
desejo de narrar desse personagem que, atado por correntes ao volante de seu
carro, vê os painéis de néon reservados à publicidade transformados em um poema visual feito de palavras como
Sex, Doubt, Death, Carne, Liebe, Lust, Korrupt, Lie, Macht, Love, Vida, Loss,
Greed, Freiheit. São idéias-força que
provêm de línguas diferentes, reveladoras da trajetória nômade e da
herança multiétnica e multicultural do artista.